Anti-projeto de Novo Código Penal

Introduzindo as Discussões sobre o “Anti-projeto” de Novo Código Penal

Em termos de Brasil, penso que todo blog que se proponha envolvido pelas questões críticas e problemáticas acerca das ciências criminais, compreendidas desde uma visão “total” ou “integral” (ciências criminais integrais), trilhando por vias muito mais cercadas pelos postulados de uma democracia substancial (portanto, indo muito além da criação primitiva de Franz Von Lizst, o qual, pioneiro, buscou aproximar o Direito Penal da Política Criminal, porém, encarando-os como conceitos díspares e conflitantes entre si, daí sua célebre frase: O direito penal é a barreira intransponível da política criminal”), não pode se desertar das discussões atuais envolvendo o Anteprojeto de Novo Código Penal, materializado no Projeto de Lei n. 236/2012, cujo relator é o senador Pedro Taques (PMDB/MT).

Inicio as discussões aqui no blog, esclarecendo o uso do termo “Anti-projeto” no headline. Bem, a expressão é de Salo de Carvalho, e foi proferida na palestra “A Reforma das Penas no Anteprojeto”, no último “Seminário Crítico da Reforma Penal”, ocorrido na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro/EMERJ, oportunidade em que se reuniram grandes personalidades das ciências criminais. O termo, como dito, é – parafraseando Lênio Streck – o “busílis da questão”, ou seja, ele caracteriza tudo que o atual projeto não é, ou seja, um “Anteprojeto”, senão, um “contra-projeto”, um documento que vai de encontro com todas as melhorias que se possa esperar de uma nova legislação (pelo menos pensando na dinâmica do contínuo aprimoramento e aperfeiçoamento das legislações brasileiras). Mas por que, então, ele vai de encontro com tudo aquilo que se esperava que fosse, ao menos, buscar?

Bem, não gostaria de iniciar minhas críticas pessoais ao “anti-projeto” nesta introdução, no entanto, faz-se necessário apontar, ao menos, algumas ideias gerais.

O atual “projeto de novo código penal” possui uma série de erros crassos, sejam gramaticais, sejam metodológicos (varia a terminologia de condutas nucleares dos tipos, não prega uma “uniformização”, o que seria o mais adequado), mas esse é apenas o equívoco mais banal. Em essência, o grande problema do atual anti-projeto é: a implantação de um punitivismo ascético. Os membros da Comissão de Juristas selecionados para realizar os trabalhos referentes à edição do Novo Código (a exemplo, Gilson DippLuiz Flávio GomesRené Ariel Dotti, Gamil FöppelLuiz Carlos Gonçalves, entre outros) parecem ter esquecido que, segundo a evolução que o saber jus atingiu nos dias atuais, faz-se completamente impossível a construção e aplicação/interpretação do Direito (penal) (no caso, a lei), de forma esparsa e concebida de forma individual e autônoma, concebendo-o de forma “nua e crua”. A Ciência do Direito Penal – e, portanto, a legislação penal – não pode ser vislumbrada sem ser inserida no campo das ciências criminais integrais, ou seja, o normativo (direito penal), que será procedimentalizado e ritualizado (processo penal), deve ser harmonizado com o empírico (criminologia) e o político (política criminal). Estes dois últimos saberes estão intimamente relacionados com a origem do crime e/ou criminalização e com o atuar estatal e social frente a sua prevenção, logo, como poderiam ser esquecidos e não ter sido considerados no momento da construção de uma nova lei penal?

Bem, no atual anti-projeto (http://www.ibccrim.org.br/upload/noticias/pdf/projeto.pdf) toda esta incoerência é verificada nos gravíssimos erros técnicos no que se refere à construção da dogmática jurídico-penal na atualidade, no recrudescimento do quantum das penas, na criação de novos tipos penais (inclusive abarcando bens coletivos, esquecendo-se a individualização da responsabilidade penal e tripartição da teoria analítica do delito), redução das hipóteses de cumprimento alternativo de pena (rarefação de substitutos penais), de modo que, dentre outras diversas questões, pode-se constatar – um verdadeiro mal-estar inerente à nossa cultura punitiva.

A propósito disto, Vera Regina Pereira de Andrade, em sua “Análise Criminológica da Reforma Penal” (também ocorrida no Seminário da EMERJ) diagnosticou o “status caos” do projeto: […] Não obstante, a reforma se desenvolve em um patamar da história cujo método técnico-jurídico com o qual a dogmática ensina os juristas a não ver a realidade, é uma reforma murada (feita em gabinetes), e que está destinada, portanto, a compor o quebra cabeças da legislação penal. Como se em um passe de mágica, com uma reordenação se teria uma “funcionalidade eficiente”. E, sub-repticiamente, subterraneamente, se contrabandeia pra dentro da reforma a maior criminalização que se tem conhecimento na História Republicana, o que era pra ser um sistema coerente, se apresenta como um ornitorrinco punitivo. Um monstro punitivo que consolida a criminalização do cotidiano, uma radicalização da pena de prisão”. Sempre lúcida, sempre ofuscando a realidade marginal latino-americana, a crítica se pauta essencialmente na total ignoração ao atual “acúmulo criminológico” (pesquisas e estudos sobre criminalização e controle social) conduzido pela Criminologia Crítica, em meados da década de 70, sobretudo, nos Estados Unidos e na Inglaterra.

A despeito de ter dito tudo isso, ainda assim é preciso ser realista ao ponto de reconhecer aspectos pontuais que, de fato, são positivos, mas que, no entanto, de forma alguma, recompensam a entrada em vigor deste “ornitorrinco punitivo”.

Portanto, nesta mirada preliminar, o que se observa é que a Comissão, além de ignorar os aportes oriundos da criminologia crítica, seguiu  mão inversa à lógica democrática e constitucional-garantista do Estado de Direito que impõe, na perspectiva atual, uma contínua e progressiva tutela de direitos e garantias fundamentais do cidadão segundo a lógica da ley del más débil (vide “Derechos y Garantías”, Luigi Ferrajoli, Editora Trotta, 2011), de modo que, considerando a realidade marginal latino-americana (vide “Hacia un Realismo Juridico-penal Marginal”, Zaffaroni, Monte Avila, 1992), possa operar a contenção dos poderes (selvagens) punitivos, através do Estado policialesco e agências de controle penal, através de uma eficácia punitiva reducionista (ultima ratio) (conforme será demonstrado nos posts seguintes).

Encerro o post, mas os debates apenas se iniciam, os quais ocorrerão em autônomas postagens direcionadas para temas específicos. Valendo lembrar, por fim, que o atual anti-projeto se encontra em fase de debates, discussões, sendo sido debatido em algumas audiências públicas, inclusive.

Em todos os momentos, tem sido mais do que destacado a sua inconsistência.

Leituras/vídeos os quais considero essenciais:

1 – “Somos o País que mais Pune” – Entrevista Folha de Londrina com Juarez Cirino dos Santos -> Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2013/03/Somos-o-pa%C3%ADs-que-mais-pune-no-mundo-Entrevista-Folha-de-Londrina..pdf;

2 – “Seminário Crítico da Reforma Penal” – Revista EMERJ (v. 15, n. 60 – 2012) -> Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista60/revista60_sumario.htm;

3 – “Reforma Penal” – Revista Liberdades – Edição Especial -> Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/integra.pdf;

4 – Audiência Pública Senado sobre o Anteprojeto de Novo Código Penal – Juarez Cirino dos Santos;

5 – “Penas no Anteprojeto de Novo Código Penal” – Salo de Carvalho (Seminário Crítico da Reforma Penal – EMERJ);

6 – “Análise Criminológica da Reforma Penal” – Vera Regina Pereira de Andrade.